02 fevereiro 2006

Fraude não acaba com esperança

A revelação da fraude nas pesquisas do sul-coreano Hwang Woo-Suk foi uma decepção para todos que acreditam no potencial terapêutico das células-tronco. Mas serviu também como choque de realidade. Nos últimos anos, as células-tronco se tornaram um fenômeno científico e social tão grande que a fama exagerada já incomoda até os cientistas mais devotos.
Por mais que se fale em resultados a longo prazo, há uma expectativa generalizada de que essas células terão um efeito quase milagroso de curar doenças e fazer com que deficientes levantem de suas cadeiras de rodas e voltem a andar da noite para o dia - como mostravam os selos de homenagem a Hwang na Coréia do Sul.
A falsificação dos trabalhos não significa que a chamada clonagem terapêutica - a produção de células-tronco embrionárias geneticamente idênticas ao paciente - nunca acontecerá. Mas deixa claro que cumprir a promessa terapêutica vai ser muito mais difícil do que se pensava. A bióloga e geneticista Nance Nardi, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sabe bem disso. Ela trabalha com células-tronco há mais de dez anos - sem fazer alarde por isso - e acredita firmemente em seu potencial terapêutico. Mas avisa: não vai haver milagre.
"A expectativa hoje é tão grande que se você diz que vai tratar um paciente com células-tronco é capaz de ele se curar sozinho", diz. Em entrevista ao Estado, ela fala do potencial das pesquisas e cobra mais responsabilidade da comunidade científica, inclusive no Brasil.
O que a senhora achou da fraude nas pesquisas sul-coreanas?
É uma triste notícia para o mundo científico. Fraude em ciência não é novidade, mas estamos possivelmente diante da maior fraude científica já descoberta. Acho que é um exemplo da pressão provocada pelo excesso de atenção dispensado ao tópico "células-tronco". Se já é assustador pensar na fabricação de resultados na pesquisa básica, o que dizer sobre a forma como essa pressão afeta a ética na pesquisa clínica? Já ouvi profissionais da saúde afirmarem ser mais rápido e barato experimentar no paciente do que em modelos animais. A pressão pelo sucesso pode muitas vezes impulsionar as pessoas a romper a linha entre o adequado e o inadequado, e esse não é um fato isolado na ciência. O caso coreano ilustra muito bem como a luta pela manutenção dos padrões éticos deve ser mantida sempre.
A senhora disse uma vez que a expectativa sobre as células-tronco é tão grande que um paciente é capaz de se curar sozinho. O que quer dizer com isso?
Refiro-me ao efeito placebo, que envolve a influência de fatores psicológicos sobre o organismo. Quando acreditamos muito que algo vai nos afetar, o organismo responde. Esse efeito pode estar presente nos estudos em que o paciente sabe que está recebendo células-tronco e já tem uma expectativa muito grande com relação aos resultados.
O que isso significa para os resultados dos ensaios que estão sendo feitos no Brasil e no mundo?
A influência do efeito placebo, somada ao fato de que a maioria dos estudos envolve um pequeno número de pacientes, significa que os resultados são ainda pouco representativos. A terapia com células-tronco parece ser benéfica em vários tipos de doenças, mas apenas quando um número maior de pacientes for incluído nos estudos poderemos saber seu verdadeiro valor.
Muita gente fala das células-tronco como algo milagroso. O que devemos esperar delas, de verdade?
Os estudos pré-clínicos, realizados com células in vitro ou em animais, tiveram resultados muito animadores, que foram em grande parte responsáveis pela geração desse clima otimista. Os estudos clínicos, ao menos em algumas áreas, parecem ter resultados positivos, mas sofrem das restrições que eu mencionei. Assim, enquanto a população em geral tem uma expectativa altamente positiva, a comunidade científica é muito mais cautelosa para confirmar esse otimismo.
Sim, os resultados são positivos. Mas a expectativa é que as células-tronco vão curar doenças. Isso vai mesmo acontecer, ainda que leve mais tempo do que se imagina?
Embora ainda seja cedo para uma resposta definitiva, acredito fortemente que sim. Desde que aprendamos como manipular adequadamente as células-tronco e as doenças em si (aprendendo em quais delas é possível obter uma resposta das células-tronco), creio que há uma gama de doenças para as quais elas representam uma alternativa mais eficiente que as terapias atualmente disponíveis. Mas, para todos os tipos de doença, como atualmente se difunde? Não creio. Acho que há um limite, mesmo para uma abordagem tão promissora como essa, representado talvez por doenças neurodegenerativas - exatamente aquelas para as quais mais se busca cura nessa área.
Nos últimos dois anos houve uma explosão de pesquisas com células-tronco no Brasil. Qual a razão para isso: modismo ou esforço científico verdadeiro?
Essa "explosão" seguiu uma tendência mundial, como era esperado tendo-se em vista o alto nível dos pesquisadores brasileiros. A ciência também tem, sem dúvida, seus "modismos", mas com um aspecto positivo, já que esforços concentrados podem trazer resultados positivos em menor tempo. O que se observa é que muitos grupos de estudiosos estão incluindo as células-tronco em suas linhas de pesquisa básica ou aplicada.
O Brasil tem gabarito científico para ter impacto nessa área?
Acredito que sim, desde que sejam respeitados alguns princípios básicos. Essa área envolve noções específicas de biologia celular, que exige uma formação também específica. Me parece que, em alguns casos, pesquisadores estão fazendo propostas de estudos sobre células-tronco que exigem conhecimentos mais aprofundados do que possuem, e tenho ouvido alguns pronunciarem impropriedades científicas sobre o assunto. Também na aplicação clínica das células-tronco tenho pedido mais comedimento, isto é, mais estudos pré-clínicos (em modelos animais) antes da aplicação em seres humanos.
Qual sua expectativa pessoal sobre a evolução dessa pesquisa?
Sou bióloga, pesquisadora de células-tronco desde antes de elas entrarem na moda, e, como tal, desejo fortemente que seu potencial seja concretizado o mais rapidamente possível, mas acredito também que isso deva ser feito com toda a prudência necessária. Assim, gostaria que a comunidade científica brasileira prosseguisse em ritmo mais lento, mas mais consistente, nas pesquisas com células-tronco.
Fonte: Estado de S.Paulo

1 Comments:

At 8:11 PM, Anonymous Anônimo said...

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