05 junho 2006

Esquecer faz bem para a memória

Cientista afirma que não se lembrar de algumas coisas é 'necessário e inevitável' para uma vida saudável

Todo mundo esquece um guarda-chuva, um aniversário ou uma reunião importante de vez em quando. Alguns, claro, com mais freqüência do que outros. Mas não há com o que se preocupar. Esquecer as coisas, segundo o cientista Iván Izquierdo, é essencial para uma vida saudável. "Não só é preciso, como inevitável", garante o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um dos maiores especialistas em memória do País.
Imagine se você se lembrasse de cada palavra, cada som, cada imagem, cada cheiro e cada sensação que passa pelos seus sensos ao longo da vida. Por mais fantástico que seja o cérebro humano, seria impossível processar e armazenar tantas informações.
Segundo Izquierdo, a maior parte do que vemos, ouvimos, cheiramos e sentimos é esquecida, naturalmente. As informações são mantidas apenas momentaneamente - tempo necessário, por exemplo, para se lembrar das últimas palavras desta frase e seguir adiante no texto. Ainda assim, ao virar a página, boa parte do que está escrito aqui será esquecido. Com alguma sorte, ficará a lembrança do recado principal: de que esquecer, afinal de contas, é humano.
Iván Izquierdo é coordenador do Centro de Memória do Instituto de Ciências Biológicas da PUC-RS e autor de vários artigos e livros sobre o tema, incluindo A Arte de Esquecer (2004). Veja os principais trechos da entrevista ao Estado.
Por que nos esquecemos das coisas?
Primeiro, porque é inevitável. Esquecemos a maior parte das coisas que nos acontecem ou que alguma vez soubemos. Algumas coisas ficam presentes na cabeça e a gente não lembra, mas muitas coisas a gente esquece de verdade. Geralmente, nos lembramos dos momentos mais emocionantes. Todo mundo sabe o que estava fazendo no dia em que o Ayrton Senna morreu. Mas o que estávamos fazendo no dia anterior ou no seguinte não temos a menor idéia. Essa informação foi perdida, porque não aconteceu nada emocionante. Em segundo lugar, é preciso esquecer, por várias razões. Uma delas é que os mecanismos formadores e evocadores de memória se saturam. Se nos lembrássemos de tudo, não teríamos como lembrar ou aprender coisas novas.
A memória, então, tem uma capacidade máxima?
Por minuto ou por segundo, sim. É como o Oceano Atlântico saindo por um cano - o oceano seria a memória e o cano, a capacidade de aprender ou de lembrar. O cano tem uma capacidade máxima de tantos metros cúbicos e não mais do que isso. Mas o oceano, não: se você joga 1 litro ou tira 20 litros não faz diferença. Ao longo do tempo, por outro lado, a memória tem uma capacidade indefinidamente grande, muito maior do que pensamos. Não há limite: quanto mais tempo passa, mais memórias se acumulam.
O que quer dizer, então, que a memória fica saturada?
Fica saturada por segundo, por unidade de tempo. Temos um certo número de células executando uma certa função a partir de certas enzimas. Não dá para fazer mais do que isso.
Como a memória é armazenada no cérebro?
Por meio de modificações estruturais e funcionais nas sinapses - as conexões entre neurônios. Cada célula nervosa recebe axônios de cerca de 10 mil outras células e emite outras cem a mil ligações para outros neurônios, então o número de conexões é enorme.
Como o cérebro seleciona o que fica guardado e o que é esquecido?
Pelo uso. A memória, para ser mantida, tem de ser recriada de tempos em tempos. É usando que a preservamos. Se não usamos uma memória, a sinapse acaba morrendo por falta de uso e a memória desaparece.
Quantas memórias podem ser armazenadas em cada sinapse?
Impossível dizer. O número de conexões que existe entre as células nervosas é tão gigantesco que é impossível determinar a função de uma sinapse individual. As memórias ficam guardadas em uma rede de milhares de sinapses, não em uma sinapse específica. Elas estão distribuídas por todo o cérebro. Por isso é possível sofrer uma lesão cerebral grande e ainda manter algumas memórias, mas não todas.
O que é a imagem que se forma na nossa mente quando lembramos de alguma coisa?
Ela provavelmente está se formando no córtex visual. Mas esse é, talvez, o último grande mistério da memória. Quando recebemos uma informação, ela é adquirida por meio de coisas tangíveis, que vemos ou tocamos. Porém, armazenamos isso através de um código que não conhecemos (jamais saberemos exatamente como funciona o código sináptico de cada memória) e, quando evocamos essa memória, ativamos isso que você falou: uma imagem visual, virtual, que pode, inclusive, vir acompanhada de sons e cheiros. Ou seja, estamos passando de algo real a um código desconhecido e, finalmente, a algo virtual. Há duas fronteiras sendo transpostas.
Lembramos poucas coisas da nossa infância, mas às vezes nos lembramos de coisas banais, aparentemente sem importância. Por quê?
Provavelmente aquilo teve alguma importância emocional na hora. Talvez no primeiro momento que você viu uma maçã, isso lhe causou uma emoção. Depois, nunca mais. Mas essa imagem ficou guardada. Às vezes gravamos besteiras emocionais e, às vezes, coisas sérias sem maior emoção.
Às vezes esquecemos o que acabamos de pensar. Por exemplo, você lembra que precisa pegar algo antes de sair de casa, mas, quando sai, esquece. Por quê?
A imensa maioria dos esquecimentos do dia-a-dia ocorre por distração. A gente passa a pensar em outra coisa e essa outra coisa ocupa o lugar daquilo que precisávamos lembrar. Trabalhamos com os mecanismos da memória sempre no limite máximo, e é nessas situações que a saturação é notada.
Quando esquecemos de alguma coisa, é porque a memória está lá e não conseguimos lembrar, ou porque ela desapareceu de fato?
Tem as duas coisas. A arte de esquecer consiste em fazer de conta que esquecemos. Muitas vezes, a gente simplesmente joga a memória para escanteio, tornando-a menos acessível. Chamamos isso de esquecimento, mas não é um esquecimento real. Reprimimos uma memória e ela fica mais difícil de ser alcançada. Mas, de fato, há memórias que são perdidas. Quase sempre por falta de uso ou por morte sináptica.
Que controle temos sobre nossa memória? Quanto dela é consciente e quanto é inconsciente?
Uma parte é consciente, mas a maior parte é automática, feita pela memória de trabalho, que funciona como um gerente geral de informações. Ela decide em cada momento o que fica e o que vai embora. Basicamente, o local de decisão está no córtex pré-frontal, e boa parte das decisões é inconsciente.
Por que há coisas que queremos lembrar, mas não conseguimos? Numa prova, por exemplo?
O branco, como se diz na escola, é resultado de uma influência hormonal. Em momentos de angústia e ansiedade, a glândula supra-renal secreta corticóides, que chegam ao cérebro e atingem o núcleo da amígdala - reguladora, entre outras coisas, da evocação da memória. Na amígdala, o mecanismo que libera noradrenalina é inibido pelos corticóides. Quando a amígdala tenta ativar uma memória não consegue, porque os corticóides abafam a lembrança.
Quanto mais praticamos nossa memória, melhor ela fica?
Sim. Esse é o exemplo de que "a função faz o órgão". Praticar a memória é a melhor maneira de mantê-la, e ler muito é a melhor maneira de fazer isso. Sem praticar, as sinapses se atrofiam e você pode perder a memória por completo. Uma pessoa muito ignorante é condenada a ter memória ruim.
Qualquer pessoa que exercitar o cérebro terá uma boa memória, ou há pessoas que são, mesmo, mais esquecidas do que as outras?
Algumas pessoas têm a memória melhor do que outras, Deus sabe lá por quê. Aquelas que praticam certamente vão ter uma memória melhor. As mais esquecidas, em geral, são as mais distraídas.
Fonte: Estadão

1 Comments:

At 4:27 AM, Anonymous Anônimo said...

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