14 agosto 2006

A ciência também veio para confundir

Contradições em pesquisas deixam a população sem saber o que fazer
A água é um santo remédio: hidrata, deixa a pele mais bonita e elimina as toxinas do organismo. Só faz bem, certo? A resposta óbvia seria sim. No início do mês, porém, um estudo científico realizado nos EUA e na Espanha mostrou que a água em altas quantidades faz mal à saúde.
Num dia, as pessoas acreditam que a água é ótima para a saúde. No outro, descobrem que pode intoxicar e até matar. Pesquisas científicas são divulgadas todos os dias e com certa freqüência criam dúvidas semelhantes.
No meio de informações aparentemente desencontradas, como fica a população? Bebe água demais ou de menos? Fica com a pesquisa que diz que carne ajuda no crescimento das crianças ou com a que alerta para os riscos de câncer de intestino? Os objetos de dúvida não são poucos: leite, telefone celular, soja, ovo, sol, café, vitamina C, chocolate...
"A ciência é assim mesmo. Essas discussões só se resolvem ao longo do tempo", afirma Flavio Edler, historiador, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência.
A idéia de que a ciência é dona da verdade, segundo Edler, surgiu no século 18, no período conhecido como Iluminismo. Foi naquela época que se passou a considerar a razão o instrumento para chegar ao conhecimento. Opunha-se à religião - sinônimo de ignorância, por se basear em hipóteses não demonstráveis.
Com o passar do tempo - principalmente a partir de meados do século passado -, a quantidade de pesquisas científicas no mundo sofreu uma explosão. Mitos foram construídos, mitos foram derrubados e mitos foram construídos para logo serem derrubados. "As controvérsias ficaram endêmicas. Mas a população não deixou de ver a ciência como autoridade inquestionável e capaz de só dizer verdades absolutas e definitivas", diz Edler.
Os próprios cientistas têm consciência de que podem ser questionados. Uma pesquisa concluída em 2002 por pesquisadores da Universidade de Loma Linda, nos EUA, e publicada no American Journal of Epidemiology mostrou que beber ao menos cinco copos de água por dia diminui os riscos de doenças fatais do coração. As últimas linhas do estudo trataram de relativizar o achado: "O consumo de líquidos como suposto fator de risco para doenças cardíacas merece estudos em outras populações ou estudos com outros contornos".
Uma das razões para as controvérsias é o fato de as pesquisas serem extremamente específicas. "Cada vez mais a ciência se hiperespecializa", continua Flavio Edler. "Muitas vezes se mexe num mecanismo específico sem ver a totalidade dos efeitos." É por isso que uma pesquisa que constata os possíveis bons efeitos da carne vermelha na habilidade mental das crianças não vê os supostos efeitos indutores do câncer de intestino - e vice-versa.
CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA
A pergunta persiste: devo beber água demais ou de menos? É possível que a resposta só seja conhecida quando for feita uma revisão de todos os estudos já realizados. Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) fizeram um trabalho assim recentemente em relação ao café. Estudaram mais de 200 pesquisas. Publicado no ano passado no British Journal of Nutrition, o texto concluiu que o café ajuda na prevenção de doenças.
Um dos autores do estudo da UnB é o bioquímico e professor José Garrofe Dórea. Ele explica que a ciência produz resultados pedaço a pedaço. "É como se fosse um quebra-cabeça. Depois é que vem a sistematização do conhecimento. É assim que se constrói a ciência."
No meio de tanta dúvida, os cientistas dão uma dica: o melhor é acreditar nas pesquisas que foram repetidas em laboratórios diferentes. É o caso do azeite. Quanto mais é estudado, mais se confirma que ele faz bem à saúde - aumenta o colesterol bom e diminui o ruim, por exemplo. "Mas se você tem um problema de saúde", conclui o professor Dórea, "não vá atrás de pesquisa científica. Procure um médico." Na dúvida, vale também o bom senso.
Fonte: Estadão